A partir desse post vamos
fazer uma análise de cada um dos volumes da trilogia escrita por Laurentino
Gomes que tem por tema central a escravidão e o seu impacto na sociedade brasileira
atual. O título não poderia ser outro e mais direto: “Escravidão”. Para tanto,
o laureado autor paranaense se predispôs a uma longa jornada, por distintos
continentes, em meio a um mundo que logo em seguida enfrentaria uma pandemia. O
primeiro volume teve sua edição original em 2019 e é composto por 30 capítulos
centrais, distribuídos por 479 páginas. A publicação ficou a cargo da Editora
Globo Livros.
Sempre muito organizado e
com uma prosa envolvente, não me surpreendeu que a obra, já em seu primeiro
volume, deixa o leitor preso e curioso sobre as informações pesquisadas e
apresentadas. Laurentino indica que os 3 volumes estão organizados por ordem cronológica,
sendo o de número 1 destinado a cobrir o período que vai desde o primeiro
leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares.
Na abertura, logo nos
capítulos iniciais, existe uma preocupação em tirar um véu mítico do leitor
mais desavisado, apontando para as origens históricas na humanidade do fenômeno
da escravidão. O próprio termo em Inglês que o designa (slavery) tem a
mesma origem etimológica da palavra que denomina os povos eslavos, de pele
branca. Isso demonstra que todas as raças já estiveram, em algum momento, sujeitas
a serem subjugadas ao papel de escravos, normalmente fruto de guerras, antes
desta vir a se tornar um vil comércio.
Obviamente tal fenômeno
se tornou mais agudo com a exploração dos povos africanos, algo que ocorria algumas
vezes com apoio de tribos daquele continente que, ao derrotar os seus inimigos
ou ao sair em sua caça, os vendiam como mercadorias para os Europeus, ávidos por
sua mão de obra para uso para os mais diversos empreendimentos, quer seja na
metrópole, quer seja nas colônias. Esse equilíbrio entre o que é real – em meio
a uma extensa pesquisa bibliográfica – e o que é ficção ou imaginação é construído
com extremo cuidado, de modo a não tirar o peso exato de atos que conformaram o
que hoje se constitui o chamado racismo estrutural presente na sociedade
moderna. Fica claro, a partir de determinado ponto, que a cor da pele passou a
ser fator predominante para definir entre o senhor e a propriedade,
principalmente no hemisfério Ocidental.
“Os números do tráfico de
escravos em território muçulmano na África são impressionantes. Cerca de 12 milhões
de negros africanos foram capturados e exportados através do Saara, do Mar Vermelho
e do Oceano Índico entre os séculos VII e XIX. Ou seja, o mesmo número de cativos
embarcados para a América ao longo de 350 anos. Só no século XIX, o número de
cativos transportados por essas rotas chegaria a 3,8 milhões. O Império Otomano
sozinho comprava entre 16 mil e 18 mil homens e mulheres todos anos até o final
do século XIX. A partir do século XVI, mercadores muçulmanos também venderam
para a América outro milhão de cativos, capturados e embarcados nas regiões da
Senegâmbia e da Alta Guiné. ‘A escravidão já era fundamental para a ordem
social, econômica e política em toda região norte da África, na Etiópia e na
costa do Oceano Índico por muitos séculos antes da chegada dos europeus’,
afirmou o historiador Paul E. Lovejoy. ‘O cativeiro era uma atividade
organizada, sancionada pela lei e pelos costumes’” (pág. 78).
O decorrer dessa
trajetória abordando diferentes aspectos, tais como o acondicionamento nos
navios negreiros, verdadeiros infernos flutuantes nos quais os que sobreviviam
não sabiam bem ao certo que lhes aguardava nos portos de chegada. É chocante
ver as gravuras que retratam o espaço exíguo no qual os escravos eram
transportados, algo que ganha cores mais fortes e sombrias quando tomamos
conhecimento da situação no interior de tais embarcações, de podridão extrema.
A perda de sua identidade
fica clara, com o passar do tempo. Povos dominantes no continente africano,
quer se entenda por dominância o ato de ser senhor de si numa vasta região ou
de um conhecimento armazenado, se esvai em meio à conjunção do lugar comum pelo
colonizador europeu de que todo são o mesmo elemento, sem suas características
específicas. “As diferenças entre esses povos e culturas eram tão marcantes
quanto a própria geografia. No auge do seu poder, no século XIV, o Mali teria sido
a mais rica sociedade do planeta. Tombuctu, um dos centros difusores do conhecimento
no mundo islâmico, abrigava uma universidade e uma grande biblioteca,
frequentada por teólogos, filósofos, poetas e escritores. Era um lugar
cosmopolita para os padrões da época. Nos seus mercados, via-se gente de todas
as origens, incluindo iraquianos e egípcios. Na atual Nigéria, hábeis
metalúrgicos igbos fabricavam barras e pulseiras de cobre e pequenas peças de
ferro em formato de enxadas em miniatura chamadas anyu, que eram usadas
em trocas comerciais nas feiras de toda a região. Em meados do século XVII, os
fulani, criadores de gado na região de Futa Jallon, na Senegâmbia, exportavam cerca
de 150 mil peças de couro por ano” (pág. 144).
A guerra entre diferentes
nações europeias para o domínio dos mares e do tráfico negreiro também é descrita.
Povos que para muitos, como os escandinavos, estariam distantes de tal
realidade, também ali se encontravam buscando lucrar com o comércio de seres
humanos, se estabelecendo ou lutando por portos no litoral africano. Isso sem falar
no já conhecido embate entre portugueses, espanhóis e holandeses, tão presente
em nossos livros de História – e algumas vezes resolvidos não somente na ponta
da espada, mas também em transações comerciais entre os Governos e seus representantes.
A importância de Angola como porto de origem, o avanço na coleta de dados
estatísticos, e a percepção de Zumbi mais em sua importância como um mito, um
símbolo no combate à escravidão do que exatamente uma figura real, que teve de
fato todos os adjetivos com os quais ele é conhecido até mesmo em fontes que
deveriam ser fidedignas, mas que demonstram ter embarcado em textos sem o menor
fundamento em pesquisas sérias, também estão presentes nesse mosaico de
diferentes visões sobre esse tema.
Outro fator que não é
deixado de lado é o papel da Igreja Católica naquela época. “Alguém hoje
poderia sugerir que apontar a Igreja como cúmplice do regime escravista no
passado seira incorrer em ‘anacronismo’, (...), que consiste no uso indevido de
valores e referências de uma época para julgar ou avaliar personagens e
acontecimentos ou fenômenos de outra. De fato, entre os séculos XV e XVIII, a
escravidão era uma prática aceita sem grandes questionamentos quase no mundo
todo – menos entre os próprios cativos, obviamente. (...) O problema, no caso
da Igreja, é que havia uma contradição insolúvel entre suas práticas e os ensinamentos
de Jesus Cristo que ela pregava – ou seja, a própria razão de sua existência.
Como combinar uma prática tão devastadora, como a escravidão, e os ensinamentos
dos Evangelhos, que pregam amor, bondade, justiça, misericórdia e acolhimento
do estrangeiro e do diferente?” (págs. 338-339).
Enfim, o leitor fica
ansioso por acompanhar a continuidade desse descortinar de elementos, ao mesmo
tempo que busca se preparar espiritualmente para absorver os horrores de algo abominável.
Que venha o Volume 2!